O engraxador não tem nome próprio, é o engraxador. Como se fosse ele mesmo uma profissão. E é sujo e tosco e apanha demasiado sol. Assobia canções más no compasso de espera que vai entre o café e mais um par de sapatos.
Ninguém sabe da vida do engraxador, duvidam até que tenha uma para além do que ali se vê, na esquina do tasco do To Zé; esse sim, como nome, mulher, filhos, um T3 e um carro relativamente novo. O engraxador não existe fora de um tubo de graxa. Há até quem diga que é Búfalo castanha que lhe corre nas veias. E tem sorte, que é marca de qualidade.
O engraxador ouve com atenção as histórias chatas dos clientes, que já não são muitos, mas certos sim. E nunca encolhe os ombros nem diz que os desabafos são tolices ou que há drama a mais na vida das pessoas com nome.
Nunca reclama, nem mesmo quando suja os dedos e lhe dizem que faz parte, que são ossos do ofício e que mau seria se assim não fosse.
O engraxador tem um sonho só: deixar escrito em letras garrafais "Esta história já não é minha" junto ao banco de trabalho e partir para um sítio qualquer onde lhe chamem Miguel e não o confundam com o que sobra de um tubo de graxa.