O engraxador não tem nome próprio, é o engraxador. Como se fosse ele mesmo uma profissão. E é sujo e tosco e apanha demasiado sol. Assobia canções más no compasso de espera que vai entre o café e mais um par de sapatos.
Ninguém sabe da vida do engraxador, duvidam até que tenha uma para além do que ali se vê, na esquina do tasco do To Zé; esse sim, como nome, mulher, filhos, um T3 e um carro relativamente novo. O engraxador não existe fora de um tubo de graxa. Há até quem diga que é Búfalo castanha que lhe corre nas veias. E tem sorte, que é marca de qualidade.
O engraxador ouve com atenção as histórias chatas dos clientes, que já não são muitos, mas certos sim. E nunca encolhe os ombros nem diz que os desabafos são tolices ou que há drama a mais na vida das pessoas com nome.
Nunca reclama, nem mesmo quando suja os dedos e lhe dizem que faz parte, que são ossos do ofício e que mau seria se assim não fosse.
O engraxador tem um sonho só: deixar escrito em letras garrafais "Esta história já não é minha" junto ao banco de trabalho e partir para um sítio qualquer onde lhe chamem Miguel e não o confundam com o que sobra de um tubo de graxa.
06 novembro 2014
28 junho 2014
Um Comboio
São sussuros. Ires-te embora são
sussurros. Foi o que o Carlos disse à Rosa. E ela sorriu, mas cá para mim
guardava era as lágrimas em sítios que não se viam.
A Rosa tinha especial aptidão
para guardar lágrimas que quase lhe escapavam em momentos inoportunos. E
mascarava-as com um sorriso bonito. Tanto, que o Carlos quase refraseou só para
lhe dizer que eram sorrisos. Ires-te embora são sorrisos.
E é assim que se brinca aos
sorrisos e às lágrimas na hora de partir. Uns fazem a vez dos outros, desdizem
os outros. São os outros, às vezes. E o sorriso da Rosa era só uma lágrima
quente que desapareceu antes de lhe chegar ao queixo. E os sussurros mudos ecoavam
só na cabeça de cada um. E pela sintonia do momento, eram sussurros a ecoar em
uníssono; sussurros que fazem as malas e vão para o mesmo sítio. Apanham o
mesmo comboio, por assim dizer.
Ires-te embora é um comboio que
chega muito depressa. E partes a dizer baixinho que não queres ir; contas os
azulejos da parede só para não veres quem fica, o que fica.
A Rosa, que é tão boa a esconder
lágrimas, não quis esconder o último sorriso, que era afinal uma lágrima, um
sussurro, um comboio. Já nem ela sabe bem. Era uma coisa para não ser outra. E os nomes nem interessam na hora de
partir.
02 abril 2014
Poema-Canção
O Quim da Cesaltina, já crescido em tamanho e em coração, diz que não
servia para mais nada, mas os poemas escrevia-os bem. Como ninguém mesmo;
pegava num lápis minúsculo e num caderno já velho e molhado pela chuva e
deixava a poesia escorrer-lhe assim, dos dedos para a grafite. E do amor para
os dedos.
A Cesaltina, óbvia mãe do Quim, bem que não queria este destino para o
filho. “Andei eu a criar um homem para agora dar em poeta”, dizia. Mas esse nem
era o problema, pelo menos não o maior. O Quim não era um poeta às direitas.
Honesto na profissão, mas pouco nobre na forma. Desorientado por não saber
fazer mais nada: nem cozinhar, nem polir pratas, nem carregar móveis, nem
sequer namorar moças… viu-se obrigado a escrever por encomenda.
Um poeta vendido! Escrevia de tudo: frases para lápides, sonetos para
namorados desajeitados (e que na maioria das vezes já a tinham pintado
bonita!), receitas para confortar amores não correspondidos e almas solitárias…
Diz quem viu que até já tem um catálogo e volta e meia vai parar com o negócio
à internet.
Mas isso nem o fascinava, que o Quim é rapaz de letra bonita e nos
computadores não há quem a faça igual. No outro dia apanhei-o a chorar
baixinho: diz que o poema para a namorada do Zé calhou mal. Armaram lá um pé de
vento, chamaram-lhe nomes feios e depois foram-se embora, com os bolsos cheios
de poemas para compensar o sucedido.
Ser poeta por encomenda e, ainda por cima, com reembolso, não é fácil. De
quando em vez, lá passa alguém na rua e exibe um sorriso largo, aí o Quim já
sabe: é um cliente contente. Esquece as amarguras e segue na poetização. Não é
por receber encomendas que tem menos coração.
Abriu um negócio na praça, com as fiscalidades direitas e tudo, chama-se
Poema-Canção.
20 janeiro 2014
Bijuteria
Dava uma fortuna por esse teu coração.
Vendi a minha mota para te comprar aquele colar caro que andavas a namorar há meses. Eu bem que gostava de andar com a mota a vaguear por aí, mas vendi-a. Vendi-a e agora não tenho nada em meu nome.
Tu ficaste contente e até me sorriste por mais vinte segundos que o habitual. E no outro dia vi-te a usar o colar caro na festa da Maria. Exibias-te e estavas bonita. Mas não falavas comigo, olhavas-me só de relance.
Vi-te de braço dado com outro moço, mais tarde. Ele levou-te ao restaurante, tem carro e deu-te um anel com um diamante. E eu não tenho nada em meu nome.
O moço é rico. Vi-o nas fotos do facebook e já viajou pelo mundo inteiro. Agora vai buscar-te à porta de casa e cumprimenta a tua mãe com dois beijinhos. Desfila-te pela cidade e pavoneia-se sem fim.
E eu, que dava uma fortuna por esse teu coração, e que só tinha a mota em meu nome, assisto a toda a cena. A pé. E nem me posso gabar por te ter dado um colar. Dizes que é bijuteria e que o vais leiloar nas festas da freguesia.
Ainda assim, o meu peito tem o teu nome. E vais ver-me derramar duas lágrimas mudas quando te casares com esse homem que não percebe de fortunas e que não precisa de vender nada para te dar o mundo inteiro.
Mas eu já sabia e sou tolo: tu não queres o meu nome após o teu. E é por isso que eu vou mudar o peito de morada e juntar dinheiro para outra mota.
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